TVs Públicas?
Participei hoje do debate sobre TVs públicas. É bem verdade que sou, por opção de reclusão, inconstante na presença em debates e desconfiado dos resultados práticos dos mesmos. Fui hoje porque era com um número reduzido de pessoas e porque recebi, com antecedência, o currículum das que eu não conheci em outras oportunidades. Não imagino que eu detenha o conhecimento completo e a opinião definitiva, mas reconheço também que venho trabalhando com o afinco necessário nessa idéia há dez anos. Por isso, na maioria das vezes sou esquivo ao que me parece um debate ordinário.
No início do dia, li o artigo n'O Globo de Luiz Eduardo Borgerth (advogado e consultor para radiodifusão) sobre mais um golpe que o PT vem preparando ardilosamente para misturar sistema de telefonia com geração de conteúdos de TV. Não é surpresa. Surpresa sim, é que não se escreva mais sobre o tema, não se coloque para a sociedade o que está realmente acontecendo no país. No geral, concordo com Borgerth mas discordo do final do seu artigo quando ele completando um raciocínio de Dominique Wolton de que "a televisão continue aberta, destinada a todos..." acrescenta o articulista que "Nacional e gratuita". Como nacional? Que tenha capital nacional ou que seus produtos contemplem somente a cultura nacional? Gratuita como? Pois se essa é a grande questão que se coloca! Quem paga a produção e veiculação dos produtos numa televisão pública?
O que acendeu a luz vermelha sobre os interessados foram dois pontos coincidentemente apresentados simultaneamente: o projeto de lei 332/07, do PT, que legisla sem debate e visa permitir que companhias telefônicas, nacionais e estrangeiras, entrem no mercado de comunicação (produção e veiculação de programas de televisão), matéria sabidamente inconstitucional e a nomeação de Secretário, com status de ministro de Franklin Martins para gerir toda a comunicação, imprensa e verbas das contas de publicidade do governo. A mesma pessoa que discute informação detém o poder da verba de custeio! E ainda essa mesma pessoa vai criar e dar forma a uma nova Televisão Pública!
Quando o Presidente da República diz que vai criar uma televisão pública, está dizendo que ela não existe. E na primeira entrevista no cargo, o Secretário responsável por sua criação diz que vai ser pública porque não dependerá da propaganda, que será integralmente custeada pelo governo. Nem seria preciso perguntar o óbvio: se, por pública, entendende-se um veículo de comunicação que atenda aos anseios da sociedade e, se essa sociedade não elegeu o governo com 100% de aprovação, como a sociedade, através desse meio de comunicação 'público' vai cobrar e questionar as políticas culturais ou não desse mesmo governo? Que jornalistas, sociólogos, historiadores, intelectuais, formadores de opinião em geral serão contratados por esse veículo 'público' e qual será sua independência de opinião se, em última análise, é esse mesmo governo que, em tese, poderia ser criticado, quem vai pagar os seus salários? Como?
Há um princípio bastante rudimentar, mas que me parece básico para entender o assunto: uma televisão pública tem como prioridade refletir os anseios e a própria cultura da sociedade, num processo de troca e independência norteado pelo que essa mesma sociedade demanda e quer ver expresso no tal meio de comunicação público. Essa liberdade só é viável amparada em pelo menos dois alicerces: que exista na TV pública um conselho superior de programação com ampla participação direta de membros da sociedade organizada e a independência financeira (nem verba governamental nem de propaganda comercial). Sem isso, na prática, não estamos falando de uma televisão realmente pública. Qualquer outra proposta resvala para uma televisão comercial (onde o interesse do anunciante está à frente) ou uma televisão estatal (onde os interesses do governo norteiam a programação).
Falaram no exemplo italiano da RAI (que se subdivide por área de interesses outros em RAI 1, 2, 3, etc.), mas a RAI não é cristalinamente pública. É massa de manobra do governo. Apelidadas de televisões públicas porque é politicamente correto falar assim, temos no Brasil, só para não alongar a lista, a TVE do Rio, a TV Cultura de São Paulo, a Radiobrás (que o nome já diz tudo!) e por aí vai. São todas televisões estatais: todas escreveram em seus estatutos e se auto-intitulam públicas para inglês ver. São todas estatais, chapa branca, massa de manobra do governo.
A que mais teoriza sobre a 'televisão pública', a 'televisão para todos' é a TVE do Rio. Pois é exatamente a que mais engana a sociedade. Engana de todas as maneiras: quem nomeia os dirigentes, é o governo. Quem dá a verba de custeio é o governo e quem permite a transferência de recursos através da propaganda de órgão estatais (Petrobras, Correios, Banco do Brasil, Caixa, etc.) é o governo. Não existe um conselho de programação com integrantes ativos da sociedade organizada. Sempre, eternamente, à cada gestão, os diretores-presidentes mudam a logomarca, mudam a programação, demitem e nomeiam em cargos estratégicos quem lhes é mais simpático, eventualmente desconsiderando a capacidade técnica e intelectual necessária ao desempenho das funções. Empregados que não se adaptam às políticas vigentes e ainda são funcionários públicos (não podendo ser demitidos salvo justo motivo) são colocados em disponibilidade, alijados da TV.
Deve-se aqui abrir um parênteses para reconhecer que isso ocorre em qualquer organização, em qualquer empresa, particular ou pública, em qualquer parte do mundo, mas vale lembrar também com muito ênfase, que essa prática não é freqüente nas empresas porque a descontinuidade de orientação impede o desenvolvimento de uma proposta de produção e programação.
Para que a TV Globo, como exemplo, crescesse em qualidade e quantidade foi necessário que o Roberto Marinho mantivesse o Boni com plenos poderes de produção durante anos a fio.
Fechado o parênteses, é justo reconhecer que nada disso é culpa dessa ou daquela gestão. Todas acreditam em suas propostas. Creio mesmo que todas tenham boa intenção. Todas são iguais em sua tentativa de fazer o melhor. Todas foram colocadas por interesses políticos e sabem, de antemão, que serão trocadas a qualquer momento dependendo dos interesses políticos desse ou daquele ministro ou secretário. Eu trabalho nessa televisão desde 1984 e nenhuma, veja, nenhuma vez assisti em sua programação a qualquer manifestação ou questionamento ao governo em nome da sociedade. Se é assim, pode ser considerada pública?
Tudo é possível quando as políticas públicas não são claras, não têm compromisso nem com a informação nem com a cultura. A população, os telespectadores assistem à TVE sem se darem conta de que ela se sustenta no governo e, portanto, com o dinheiro dos impostos de todos. Que ela se diz pública mas que eles, telespectadores, não têm nenhuma ingerência, não participam de nada: são impedidos de participar e/ou exigir a programação que realmente vá de encontro aos seus anseios.
À exemplo da ZDF na Alemanha, da BBC em Londres e outras tantas, a televisão pública deve ser mantida com a contribuição da população. Ora, se, por vias indiretas, através dos impostos, o povo já paga à TV, por que não pagar de forma clara e exercer o justo direito de opinar? Os telespectadores têm que pagar o custeio do meio de comunicação e participar ativamente, deliberativamente da informação veiculada na programação desse veículo. Assim, ele escolhe o que deseja assistir, vê produzido o que é importante para a sua cultura e tem voz (e todo o instrumento que o meio de comunicação exerce) para questionar severamente os governos. Para a nossa formação, é uma condição nova. É necessário portanto, muita discussão envolvendo a sociedade até que se conclua que uma televisão verdadeiramente para todos tem que ser sustentada por todos. E nessa hora, mais uma vez, intelectuais e acadêmicos, formadores de opinião por obrigação, convenientemente desaparecem da arena do debate.
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