minha mãe é a caçula de três irmãs: zilka sallabberry, loudes mayer e ela. minhas tias sempre foram um sustentáculo para minha mãe que nunca soube lidar bem com a vida e, em paralelo, sofria com uma neurose profunda (que naquela época não era ainda diagnosticada nem medicada). por toda a vida minha mãe foi buscar alento nas irmãs. um dia, a lourdes morreu. foi um baque forte, mas restou a zilka que era efetivamente a querida da minha mãe.
a kakay ouvia a minha mãe, mas não deixava de criticá-la árduamente. kakay sempre foi uma mulher profundamente independente e extremamente crítica da vida ou melhor, com uma visão bem centrada sobre tudo. era contemporânea. com o nascimentos dos seus 3 netos ela afastou-se de tudo e todos e foi uma avó daquelas que a gente só vê nos contos.
ela sempre me acolheu como um filho e nossa relação era muito profunda, muito saudável. ela esteve ao meu lado em todas as fases difíceis da minha vida e o mesmo em relação a minha mãe. só que minha mãe é carente e depositava na zilka toda a sua existência. com os netos criados e a idade avançada, a zilka ficava em casa, meio matriarca, dessas casas que todo mundo tem a chave, todo mundo entrava dia e noite e de madrugada, ora para comer, ora para dormir ou ver televisão.
após três isquemias , kakay ficou numa cadeira de rodas e aí já tinha perdido o mariozinho, seu filho único e paixão avassaladora. achei que ela não resistiria, mas resistiu. por mais três anos. tinha o retrato do filho em frente à sua mesa e continuava a receber a todos e a distribuir de tudo: chocolates, conselhos, o ombro (principalmente!), sua conversa animada e sempre muito bem informada. surgiu então um tumor no queixo, um ovo enorme que logo foi diagnosticado como um câncer raro.
ela não se deixou abater em nenhum momento. fazia as sessões de radioterapia e passeava pelas ruas da sua copacabana amada, usando uma máscara cirúrgica no queixo para não impingir aos transeuntes aquela imagem feia. e era mais ou menos essa mulher que recebia minha mãe em todos os finais de semana, dedicando-se a ouvi-la e orientá-la, sempre mostrando um lado bom, otimista, etc. minha mãe vivia para a minha tia. estavam ligadas por um umbigo gigantesco.
depois de um mês de sofrimento numa uti, a kakay finalmente morreu (para meu alívio que não queria vê-la naquele sofrimento inútil)... e daí comecei a cuidar da minha mãe, até porque achei que ela não fosse suportar e morrer em seguida. dia 10 agora completarão dois anos que minha tia morreu e minha mãe, de lá para cá, tornou-se um mulambo, uma sombra de uma pessoa.
tenho me desdobrado em vários telefonemas diários e visitas ocasionais. Ela diz que só tem a mim e toda aquela história do deprimido crônico já com alguma senilidade.
não sofro de depressão, mas é sempre muito ruim estar com a minha mãe, sempre saio mal. meu outro irmão não toma conhecimento. tentei trazer minha mãe para morar comigo, mas seu gênio insuportável (depois eu conto a minha infância) não permitiu e ela foi morar numa vila, em copacabana. e, por motivos outros, vim para a lapa.
e agora está criado o impasse: minha mãe não melhora nem com doses cavalares de anti-depressivos que, por outro lado, têm que ser administrados com cuidado por causa da sua idade. ela diz que não aceita que a zilka tenha morrido e não ela. ora, é um pensamento que eu não tenho explicação. foi porque foi. para me preservar, mamãe procura dizer que está bem, mas num olhar mais apurado, percebo que está definhando e vai morrer. normal porque todo mundo um dia morre, mas ela está se matando, prisioneira da sua própria angústia.
tem uma vizinha, mulher de temperamento forte, que está sempre lá com ela, sempre tratando de distraí-la, mas não adianta, ela não reage. já falei com médicos e psiquiatras. todos concordam que não há muito a fazer numa pessoas de idade avançada que simplesmente não quer viver. numa pessoa mais jovem, poderia ser tentada a internação e os eletro-choques que dão execelente resultado nesses casos, mas com a idade dela...
voltado exclusivamente para ela, dando o amparo à minha maneira, o que eu posso, tenho vivido para tentar amenizar a dor da minha mãe. ela reconhece tudo, diz que só tem a mim no mundo e toda essa história que, ao contrário de enaltecer, sobrecarrega com o peso de uma responsabilidade que não tenho como carregar.
para quem não sabe, nada a ver com um suicídio propriamente dito, a depressão mata... a pessoa vai deixando de se distrair com uma televisão por exemplo, vai parando de comer, vai definhando e morre. minha mãe vai morrer assim. o processo já começou há muito tempo, agora está galopante. e eu estou olhando. fico me perguntando se, quando ela morrer, não terei alguma conta a ajustar comigo mesmo. não sei, o tempo dirá... com certeza terei sim.
curiosamente, dia desses, já com os sinais da senilidade na própria indagação, o sérgio brito me perguntou se, da família de artistas só restava eu. constrangido, respondi que restava a minha mãe também, fato que ele ignorou. há dois dias, soube que o sérgio teve uma queda rápida e que está gravando o programa em casa, mas em avançado estado de senilidade.
meu filho mais velho infelizmente não decolou, vivendo franciscanamente numa cidadezinha fronteiça a minas com a parca ajuda financeira que posso dar. tadeu, mais jovem, está estudando e é bastante ativo. vai decolar, com certeza. nunca me aproximei de ninguém da família (netos da kakay, etc) por opção, tenho a minha vida. imagino que muito brevemente estarei realmente sozinho nesse aspecto que o sérgio brito quase vaticinou.
05/03/2007
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- G
- Nada encontrado. Seria ousadia demais definir o indefinível, dizer quem sou ou se sou. Deve ser uma miscelânia de idéias entrecortadas, salpicadas de perguntas sem respostas e indecisões doloridas. O que mais poderia ser?
Em suma...
"Em suma, namorei o diabo sem ter coragem para ir até o fim"
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